quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Uma fábula sobre a fábula.

Quando Deus criou a mulher criou também a fantasia.
Um dia a Verdade resolveu visitar um grande palácio. E 
havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão 
Harun Al-Raschid.  
Envolta em lindas formas num véu claro e transparente, 
foi ela bater à porta do rico palácio em que vivia o 
glorioso senhor das terras mulçumanas. Ao ver aquela 
formosa mulher, quase nua, o chefe dos guardas 
perguntou-lhe:  
- Quem és?  
- Sou a Verdade! - respondeu ela, com voz firme. - Quero 
falar ao vosso amo e senhor, o sultão Harun Al-Raschid, o 
Cheique do Islã!  
O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, 
apressou-se em levar a nova ao grão-vizir:  
- Senhor, - disse, inclinando-se humilde, - uma mulher 
desconhecida, quase nua, quer falar ao nosso soberano, 
o sultão Harun Al-Raschid, Príncipe dos Crentes.  
- Como se chama?  
- Chama-se a Verdade!  
- A Verdade! - exclamou o grão-vizir, subitamente 
assaltado de grande espanto. - A Verdade quer penetrar 
neste palácio! Não! Nunca! Que seria de mim, que seria 
de todos nós, se a Verdade aqui entrasse? A perdição, a 
desgraça nossa! Dize-lhe que uma mulher nua, 
despudorada, não entra aqui!  
Voltou o chefe dos guardas com o recado do grão-vizir e 
disse à Verdade:  
- Não podes entrar, minha filha. A tua nudez iria ofender 
o nosso Califa. Com esses ares impúdicos não poderás ir 
à presença do Príncipe dos Crentes, o nosso glorioso 
sultão Harun Al-Raschid. Volta, pois, pelos caminhos de 
Allah!  
Vendo que não conseguiria realizar o seu intento, ficou 
muito triste a Verdade, e afastou-se lentamente do 
grande palácio do magnânimo sultão Harun Al-Raschid, 
cujas portas se lhe fecharam à diáfana formosura!  
Mas... 
                                     Allahur Akbar! Allahur Akbar!  
Quando Deus criou a mulher, criou também a Obstinação. 
E a Verdade continuou a alimentar o propósito de visitar 
um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em 
que morava o sultão Harun Al-Raschid...  
Cobriu as peregrinas formas de um couro grosseiro como 
os que usam os pastores e foi novamente bater à porta 
do suntuoso palácio em que vivia o glorioso senhor das 
terras mulçumanas.  
Ao ver aquela formosa mulher grosseiramente vestida
com peles, o chefe dos guardas perguntou-lhe:  
- Quem és?  
- Sou a Acusação! - respondeu ela, em tom severo. - 
Quero falar ao vosso amo e senhor, o sultão Harun AlRaschid, Comendador dos Crentes!  
O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, 
correu a entender-se como o grão-vizir.  
- Senhor - disse, inclinando-se humilde, - uma mulher 
desconhecida, o corpo envolto em grosseiras peles, 
deseja falar ao nosso soberano, o sultão Harun AlRaschid.  
- Como se chama?  
- A Acusação!  
- A Acusação? - repetiu o grão-vizir, aterrorizado. - A 
Acusação quer entrar nesse palácio? Não! Nunca! Que
seria de mim, que seria de todos nós, se a Acusação aqui 
entrasse! A perdição, a desgraça nossa! Dize-lhe que 
não, que não pode entrar! Dize-lhe que uma mulher, sob 
as vestes grosseiras de um zagal, não pode falar ao
Califa, nosso amo e senhor!  
Voltou o chefe dos guardas com a proibição do grão-vizir 
e disse à Verdade.  
- Não podes entrar, minha filha. Com essas vestes 
grosseiras, próprias de um beduíno rude e pobre, não 
poderás falar ao nosso amo e senhor, o sultão Harun AlRaschid. Volta, pois, em paz, pelos caminhos de Allah!  
Vendo quem não conseguiria realizar o seu intento, ficou 
ainda mais triste a Verdade e afastou-se vagarosamente 
do grande palácio do poderoso Harun Al-Raschid, cuja 
cúpula cintilava aos últimos clarões do sol poente.  
Mas... 
Allahur Akbar! Allahur Akbar!  
Quando Deus criou a mulher, criou também o Capricho.  
E a Verdade entrou-se do vivo desejo de visitar um 
grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que 
morava o sultão Harun Al-Raschid.  Vestiu-se com ríquissimos trajos, cobriu-se com jóias e 
adornos, envolveu o rosto em um manto diáfano de seda 
e foi bater à porta do palácio em que vivia o glorioso 
senhor dos Árabes.  
Ao ver aquela encantadora mulher, linda como a quarta 
lua do mês de Ramadã, o chefe dos guardas perguntoulhe:  
- Quem és?  
- Sou a Fábula - respondeu ela, em tom meigo e mavioso. 
- Quero falar ao vosso amo e senhor, o generoso sultão 
Harun Al-Raschid, Emir dos Árabes!  
O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, 
correu, radiante, a falar com o grão-vizir:  
- Senhor, - disse, inclinando-se, humilde - uma linda e 
encantadora mulher, vestida como uma princesa, solicita 
audiância de nosso amo e senhor, o sultão Harun AlRaschid, Emir dos Crentes.  
- Como se chama?  
- Chama-se a Fábula!  
- A Fábula! - exclamou o grão-vizir, cheio de alegria. - A 
Fábula quer entrar neste palácio! Allah seja louvado! Que 
entre! Benvinda seja a encantadora Fábula: Cem 
formosas escravas irão recebê-la com flores e perfumes! 
Quero que a Fábula tenha, neste palácio, o acolhimento 
digno de uma verdadeira rainha!  
E abertas de par em par as portas do grande palácio de 
Bagdá, a formosa peregrina entrou.  
E foi assim, sob o aspecto de Fábula, que a Verdade 
conseguiu aparecer ao poderoso califa de Bagdá, o sultão 
Harun Al-Raschid, Vigário de Allah e senhor do grande 
império mulçumano!


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